segunda-feira, 25 de abril de 2011

MUDARAM AS CRIANÇAS?

Sueli Caramello Uliano

Brequei para não levar porrada, mas levei

Dou-me conta de que tropecei nos últimos anos em semáforos que, mais do que parar, me fizeram pensar... Ou seja, brequei para não levar porrada, mas levei. Conto aqui alguns casos que de alguma forma se entrelaçam, certa de que ninguém me acusará de estar tocando trombeta à frente de umas parcas esmolas.

Há alguns anos, estando em evidência uma das piores rebeliões na Febem, parei num cruzamento de grandes avenidas. O dia estava quente, o trânsito ruim... E eu no esforço, acreditando que ia dar tempo para tudo, ora se ia! Observo distraída um garoto de treze ou catorze anos... E ele rouba-me de repente a atenção com um gesto aparentemente banal: aproxima-se de um carro e levanta a camisa para mostrar-se desarmado, depois estende a mão e os olhos em direção ao motorista que faz por ignorá-lo. Repete o gesto, repete-se a indiferença... e o menino vem caminhando, descalço, frustrado. Dói-me essa humilhação de pôr-se sob suspeita, de sentir-se acusado esmolando inocência, alegando eu peço mais num róbo, quem sabe! Semáforo demorado, vou-me sentindo espremida entre o vermelho e o menino que avança... Quando, no entanto, ele faz menção de passar à minha direita, não me contenho e faço-lhe um sinal... E me lembro tardiamente de que o último troquinho eu tinha usado na padaria. Fico, assim, entre a carteira e o menino que encostou na minha janela. A menor nota é de dez! Abro uma nesga do vidro e passo a nota dobrada. O menino dá dois passos para trás, ergue os braços arqueados, as mãos fechadas em punhos e se põe a pular e gritar obrigado, dona,Deus lhe pague, dona... E eu queria sumir no banco, acusada por todos os lados por alimentar essa cambalhada, por dar dinheiro que não se sabe como vai ser gasto, dinheiro para droga? para "pais de rua"? Sei lá! Só sei que vi o rapaz correr por entre os carros como se levasse um tesouro, uma fortuna. Tomara levasse um pouco de dignidade. Para mim, caía por terra o mito de que se fatura uma fortuna nessa mendicância.

Lembrei-me desse episódio devido a este, mais recente: parada num semáforo, observo a garotinha magricela que caminha mancando, os pés descalços pelando no asfalto, um sol ardido de meio-dia. Paro no mesmo local duas horas depois e lá está a menina, que, desta vez chega até mim. Pergunto-lhe por que manca e ela explica: é que eu tô cum furunculão na sola du pé, tia!. A mãe? Está no outro semáforo e vai levá-la à farmácia mais tarde. Chateada e impotente, abro a carteira e passo-lhe um real pela fresta do vidro. A pequena agradece e num tom sofrido de quem confere, cansada, o resultado da própria competência nesta dureza de vida, suspira: É o meu primeiro real, hoje, tia! E eu, ainda com a carteira na mão, não tenho dúvidas: dou dez. A menina parece travada, olha ao redor de si e diz num choramingo: Déis real! Onze real! Um companheirinho - talvez irmão - implora-me, colado ao vidro, com o olhar... E olha para a menina, consciente de que a fonte esgotou-se. E a menina entrega a ele a nota de um real. O sinal verde abre-me o caminho de fuga.

Dias depois, mesmo lugar, paro na primeira fila rente à faixa de pedestres, e lá vem o miúdo suposto irmão, sem camisa, o calçãozinho desabado nas ancas. Pára à esquerda do carro, logo à frente, estende uma cordinha no chão e me instrui com a voz e com o gesto: Vem, tia, avança! E eu obedeço, engatando a primeira e... Volta, tia, volta um pouquiiinho... Engato a ré... Aí... isso, tia! E ele se põe a puxar com força, satisfeito, a corda que ficou presa sob o pneu, rindo da proeza que - permitam-me - nós realizamos. Depois ele encosta o rosto no vidro onde mal alcança e, como eu esperava, pede: Posso fazer um bibi, aí, tia? Surpresa, hesito em abrir a janela, com a impressão de que ele não alcançará a buzina... E o verde vem estragar a nossa brincadeira. Da próxima vez eu deixo! Imagino a orquestra de bibis que me atacariam se eu ficasse ali, brincando!!!

No mesmo dia, à noite, do outro lado da cidade, estou no carro lotado de amigas, mas, desta vez, no banco do co-piloto. O moleque - talvez oito ou dez anos - chega-se à janela da motorista, imprudentemente aberta devido ao calor. Dá uma moeda aí, tia. A Meire explica que não tem troco. Ele engrossa a voz e repete ameaçadoramente gutural: Dá uma moeda, aí! E eu vejo, contrariada, que a Meire começa a catar no porta-treco do carro algumas moedas. Moeda, mesmo? Ou você quer nota? Sem resposta, ela entrega as moedinhas e o menino se afasta. Meire! - estou boquiaberta com a mansidão dela - O menino engrossa a voz e você obedece? É ela quem se surpreende, então. E você não viu o caco de vidro? Se eu mexo o braço esquerdo, ele me risca com a ponta. De fato, eu não vira que o pequeno estava "armado"!

Sei que todos têm muitas histórias como essas para contar. Além de que - ninguém o ignora - há desfechos terrivelmente trágicos. Que fazem essas crianças nas ruas? Meu pai, filho de imigrantes italianos, aos seis anos subia numa banqueta para fazer pequenos trabalhos manuais. Minha mãe, aos doze, trabalhava, com documentos falsos, numa tecelagem. E assim todos os meus tios e tias mais velhos brincavam de ganhar trocados entregando jornais e engraxando sapatos, ajudando na quitanda na hora de maior movimento, levando o almoço para o pai, na fábrica. Se havia exploração, era uma exploração que, via de regra, não resultava em delinqüência. E fora isso, já no meu tempo, todos gostávamos e pedíamos, às vezes: Mãe, posso brincar na rua? Porque a rua era espaçosa e agradável, dava para correr num pega-pega veloz, montar um mãe-da-rua autêntico, andar de bicicleta e carrinho de rolimã na calçada larga; bandidos e mocinhos escondiam-se atrás dos postes de iluminação.

Mudaram as crianças? Não! Com certeza, não! As crianças continuam brincando de ganhar trocados, ou roubá-los e enfrentar um pega-pega, e cumprir com as exigências da mãe-de-rua, do pai-de-rua. Não mudaram as crianças! Mudou, sem dúvida, a família que as acolhe. E mudou a rua! É claro que não defendo a exploração de pôr criança para trabalhar... Mas também não defendo a delinqüência! Defendo, sim, o direito de receber educação, de aprender as exigências da vida a cada passo, a cada ano, na dose certa. E defendo a oportunidade de brincar, de vibrar com as descobertas, de sonhar com um bibi... Porém não nas ruas de hoje... Defendo a austeridade de um governo que tenha moral de proibir a criança na rua e lhe dê escola e amparo antes de que se torne infrator. Que saiba defender esse brasileirinho mirrado, essa vida severina, sem olhá-la como se fosse a escória que não devia ter nascido. E fazer dela um rebento de oliveira, ao redor da mesa farta, no calor de um lar. Porque nesse jogo de brincadeiras e irresponsabilidade que rola nas ruas de hoje, já não se aprende a ser mocinho. A escola é para bandidos que, às vezes, brincam de matar, outras, de morrer.




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Sueli Caramello Uliano , mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela Universidade de São Paulo, Presidente do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para assuntos de adolescência e educação.

É autora do livro Por um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais.

e-mail: scaramellu@terra.com.br







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